Em Moçambique, milhares de crianças continuam a aderir ao trabalho como forma de assegurar o seu sustento e das suas famílias, uma situação que faz com que muitas delas estejam, nos últimos tempos, expostas ao risco de contaminação pelo novo coronavírus. As actividades agrícola, pesca, garimpo ilegal e comercial estão entre as principais áreas que absorvem a mão-de-obra infantil.
Na província de Nampula, a mais populosa do país, de acordo com dados governamentais, mais 20 mil crianças estão expostas ao contágio pelo novo coronavírus, por serem forçadas a ir à rua desenvolver comércio e praticar actividades do garimpo mineral para sustentar suas famílias. Isto acontece numa altura em que a capital provincial foi declarada, pelas autoridades sanitárias, o primeiro local de transmissão comunitária da Covid-19 no país.
Na cidade de Nampula, considerada terceiro maior centro urbano de Moçambique, muitas são as crianças que desenvolvem as actividades comerciais na via pública e nos mercados formais e informais, motivadas pela extrema pobreza e por outros vários factores.
Todas as crianças vendedoras de rua, assim como na mineração artesanal, não praticam nenhuma forma de protecção contra o novo Coronavírus e, nos locais onde elas prestam serviços, nota-se falta de condições para o efeito.
Jaime Trinta é um dos exemplos de crianças que arrisca a sua vida para sustentar outras, através da actividade comercial. Com 16 anos de idade, Jaime cuida dos seus quatro irmãos, depois de ter perdido os seus pais no ano passado.
O petiz contou-nos que, um mês depois dos seus pais terem perdido à vida, os familiares abandonaram-lhe, junto com os seus quatro irmãos, e foi daí que teve a ideia de arranjar um negócio para desenvolver, (venda de sacos plásticos, no mercado “Matadouro”) no sentido de garantir o sustento dos seus irmãos. O menor conta que, para a realização com sucesso das suas actividades, tem deixado os seus irmãos, ora à sua responsabilidade, com os seus vizinhos e só volta a vê-los por volta das 18 horas quando larga do seu biscato.
O pequeno chefe de família, que sempre se expõe em multidões de pessoas, no seu dia-a-dia, diz ter conhecimento sobre o novo Coronavírus, mas assegura que não tem outra alternativa para se distanciar do meio que lhe permite ganhar a vida. “ Eu não tenho como não ir ao mercado vender, porque se não fizer isso os meus irmãos estarão a morrer à fome. Neste momento, sou a única pessoa que garante alimentação dos meus irmãos”, contou o menor.
No entanto, o menor disse que a única medida que tem usado para a prevenção do novo Coronavírus é apenas a máscara, uma vez que no mercado não há condições para o distanciamento físico e higienização das mãos. “O medo de contaminar pela Covid-19 é maior e daqui posso até transmitir aos meus irmãos em casa, mas sempre que é possível dou o meu máximo, no sentido de me prevenir e aos meus irmãos”, disse.
Catarina António tem 17 anos de idade e vive na unidade comunal Eduardo Mondlane, bairro de Muahivire, na cidade de Nampula. A menor vende ovos e conta que pratica aquela actividade para garantir o sustento dela e da sua tia e prima, com quem vive e que neste momento encontra-se doente.
A rapariga não vende num local fixo, facto que faz com que circule um pouco por todas as ruas da cidade de Nampula permitindo o contacto com pessoas de diferentes pontos da cidade, actualmente declarada local de transmissão comunitária.
“Minha tia não trabalha e encontra-se doente há mais de um ano, por essa razão sinto-me obrigada a vender para garantir alimentação em casa, porque se eu não for à rua nesse dia poderá se passar fome em casa”, contou para depois reconhecer que está em iminente risco de contaminação da covid-19, mas não tem outras formas de evitar isso.
Outra rapariga por nós entrevistada é Alima Hálito de 15 anos de idade, residente no bairro de Namicopo, o mais populoso da cidade de Nampula. Ela vende laranjas e vive com sua madrasta há três anos.
A adolescente conta que de segunda à sábado está nas ruas da cidade de Nampula a vender laranjas, e quando se faz as ruas não se previne da Covid-19, porque, segundo ela, a sua madrasta não lhe deu a máscara e diz que o coronavírus não existe e que a mesma apenas afecta aos ricos.
A rapariga disse que a sua madrasta lhe obriga a vender produtos nas ruas da cidade de Nampula para garantir o sustento dos seus irmãos, visto que o pai da mesma perdeu a vida em 2015. Alima diz “tenho medo de contaminar pelo Coronavírus, mas porque a minha madrasta manda-me não tenho outra alternativa. Acredito que se for contaminada pelo vírus, também, todas as pessoas da minha casa vou lhes contaminar, visto que quando chego à casa brinco com os meus irmãos”.
Além da exposição a que estão sujeitas, no seu dia-a-dia, as crianças enfrentam outros problemas graves: a violência policial e a violência sexual. No início do Estado de Emergência, decretado pelo chefe do Estado, milhares de crianças na cidade de Nampula e um pouco por todas as províncias do país foram violentadas nas ruas alegadamente pelo incumprimento das medidas impostas, sendo uma delas o uso das máscaras de protecção facial.
Por outro lado, a Sociedade Civil e as autoridades governamentais, através do Gabinete de Atendimento a Família e Menores Vítimas de Violência Doméstica, mostram-se preocupados com aumento dos casos de violações sexuais contra menores nos últimos três meses. Durante este período, só na Província de Nampula, foram registados um total de 89 casos do género, contra 39 do igual período do ano passado, de acordo com dados partilhados pela responsável do Gabinete, Senhora Margarida Cheque.
“Na cidade de Nampula os números começaram a aumentar, nos últimos três meses, período em que vigora o Estado de Emergência no país, e isso nos preocupa muito, daí que pedimos aos responsáveis pelas crianças para maior controlo, sobretudo com as pessoas com quem deixam para cuidar dos menores”, exortou. Aquela responsável disse ainda que os dados, ora divulgados, podem não corresponder a realidade, uma vez que, segundo ela, muitos pais e encarregados de educação preferem resolver os casos de forma “amigável”.
“Isso, também, nos preocupa, daí que reforçamos o nosso apelo no sentido de denunciarem esses casos para se tomarem medidas duras contra essas pessoas”, pediu a nossa entrevistada.
UNICEF preocupado com a exposição de crianças vendedoras de rua
O Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), em Nampula, manifesta-se preocupado com a permanência de crianças vendedoras de ruas e mercados, mesmo após a declaração do terceiro maior centro urbano do país, Nampula, de local de transmissão comunitária.
Recentemente, um inquérito sero-epidemiológico, realizado na cidade de Nampula, concluiu que os mercados são os principais pontos de propagação da pandemia da Covid-19. Ainda assim, várias crianças têm permanecido nos diversos mercados, localizados na capital provincial, com objectivos de vender os seus produtos e serviços.
Baisamo Marcelino Juaia, coordenador provincial da UNICEF em Nampula, lamentou a situação e revelou que a sua organização já se juntou aos esforços em curso visando minimizar os riscos de transmissão e o impacto da Covid-19 nas crianças.
“Grande parte dos mercados tem muitas crianças, e isso significa violação dos seus direitos segundo artigo 32 da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, pois elas estão a praticar essas actividades num espaço onde a segurança é posta em causa. Elas precisam da nossa protecção, por isso nós nos juntamos à algumas organizações na reorganização dos mercados e aglomerados, e neste processo estamos a apoiar na criação de condições de água e de saneamento para as pessoas que lá estão e pensamos que, de alguma forma, vai poder beneficiar as crianças. Também já temos uma equipa técnica para olhar as diferentes intervenções a nível dos locais onde as crianças estão permanentemente aglomeradas e essa equipa vai ajudar na busca de possíveis soluções”, disse.
Num outro desenvolvimento, Baisamo mostrou-se preocupado com o aumento de números de deslocados de ataques terroristas de Cabo de Delgado que procuram refúgios na província de Nampula, onde quase a metade são crianças.
Entre outros serviços a serem oferecidos as crianças refugiadas, Baisamo disse que a sua organização já está a trabalhar com uma equipa da saúde para criação de condições visando a triagem e seguimento das crianças deslocadas com vista a garantir que não haja problema de desnutrição entre este grupo.
“50% dos deslocados são crianças e cerca de 33% são mulheres, então são dois grupos vulneráveis que fazem parte da maioria dos deslocados de guerra que chegam à província. Portanto, nós temos essa obrigação de trabalhar com a saúde para fazer uma triagem para saber se há crianças com desnutrição crónica, e se há, encaminhamos para um atendimento específico”, disse. Mais adiante o responsável afirmou “estamos a fazer o registo de crianças que antes de abandonar os seus distritos estavam a estudar, e em que classe estavam, visando participar na criação de condições para ajudar a sua integração em turnos e escolas mais próximas dos locais onde estão a ser acolhidos e garantir que na retoma das aulas elas não sejam excluídas do direito à educação”.